sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Injusta (Arco Descendente)



(Então, Dona Imundícia? Cai pra dentro!)


A injustiça do mundo!
O que faço com ela?
Sinto seu cheiro...
Olho em seus olhos...
Abalroo sua derme
E sinto sua existência
Maior do que a minha.

Ela possui todos os sentidos
E todas as armas contra mim

A injustiça do mundo
Essa hermafrodita oleosa
Lés a lés e semovente
E especialmente bela
Aos olhos de seus filhos

O que faço com ela?
Sinto seu cheiro
Olho em seus olhos
Que me hipnotizam
Olhos de mormaço...
O que faço para esquecê-la?

Convivo com todos seus adjetivos.
A injustiça silenciosa do mundo retumbante.

A injustiça do mundo, véio!
A injustiça do mundo, mano!
A injustiça do mundo, tio!
A injustiça do mundo, irmão!
A injustiça do mundo, doutor!
A injustiça do mundo, excelência!
A injustiça do mundo, amigo!
A injustiça do mundo, pai!
A injustiça do mundo, filho!
A injustiça do mundo, espírito santo!
A M É M, M Ã E!!


j. a. pelegrina, 09/04/2006

Tristeza (Arco Ascendente)

Você mora dentro de mim, tristeza
E a beleza da solidão é feia
Sempre que me sinto incoerente

Mas não vou romper a veia
Quebrar o vaso onde bebo sentimentos

Há momentos bons e outros
Que não serão lembrados
Em dias de alegria descomunal

Atear fogo agora é tarde e fortuna
Há dunas e diques
Perfazendo orlas e muros
Há ventos e furos
Tanta coisa indene no mundo
Resgatada do meu ódio inconveniente

As águas virão suaves
Prosopopéias de algas e sais
Mais do que magia, coerência
Da felicidade que virá habitar em mim



j. a. pelegrina, 24/08/2006

Mendigo Bêbado (Arco Descendente)

um bêbado desliza
não anda quando pisa
impetuosa a brisa
o atira na parede

um lúcido o inferniza
a noite o inferniza
a vida o inferniza
a fome a dor e a sede

parece-me um triste
a vida é mesmo triste
o meu olhar é triste
pondo-me a contemplá-lo

não sei se deus existe
se o bêbado existe
se a justiça existe
por isso eu me calo

um bêbado um louco
eu parecendo louco
não vou eu não sou louco
salvar aquele trôpego

espero mais um pouco
eu sei que pouco a pouco
a paz virá e um pouco
lhe haverá de fôlego

um palmo de justiça
a terra por justiça
a véspera justiça
que nunca está presente

caprichos da sevícia
o viço da sevícia
a terra por sevícia
enterra outra semente

adeus à personagem
de quem a personagem?
o autor da personagem
obliterou o enredo

estúpida viagem
viver pela viagem
sem escolher viagem
que só nos causa medo


j. a. pelegrina, 27/06/97

Madrugada em Sampa (Arco Descendente)

Essas ruas têm noites
Sorrisos e choros
Essas ruas têm moitas
De concreto e de ouro
Essas ruas que são
Liberdade e prisão
Multidão e saudade
Deus não pisa não

Essas ruas que têm
Ladrões de verdade
Essas ruas que são
Toda uma eternidade
Essas ruas se acabam
Logo pela manhã
Com restos que nem
O diabo abocanha

Essas ruas são frutos
De muitas paixões
Essas ruas têm vultos
E têm emboscadas
Essas ruas também
Têm nós e gravatas
Que deus não desata
E o diabo detesta

Essas ruas por fim
É sampa no avesso
Essas ruas no mapa
Têm dois endereços
Essas ruas são feitas
De grana e carne
Tanto a servir
Que “Deus & Diabo”
Não arrisca invadir.

j. a. pelegrina, 05.11.98.

dEUs (Arco Ascendente)




Deus me inventou e eu me reinvento.
Aí eu reinvento Deus.
E Ele desiste de mim.


Deus me inventou
E eu me reinvento.
Assopro forte um vento
E espalho o velho pó
De meus pensamentos.

Havendo sentimentos
Vários e júbilos constantes
Recrio-me estante
Faço-me livro
Reviro-me em terra
Expluo sementes
Torno-me semente e árvore

Ora arrebento
Ora emendo
Alhures... rebento
Mas... o tempo...
O mesmo tempo
Sempre o tempo

Que outro seria
Senão este ser
Que se refaz
Em horas de espanto?

Deus?
No qual se crê?
Ou este que invento?


j. a. pelegrina, 05/02/2009

Burundangas (Arco Ascendente)

Quem era massa
Hoje está nessa desgraça
Pouca paz e muita liça
Muita raça e pouco pão

Quem era leve
Hoje tem o que lhe pese
Sai pagando o que não deve
Dizimando o galardão

Quem era oxóssi
Hoje chora no peji
E beija boca do siri
Pra não mais comer sabão

Quem era louco
Pra ficar famoso e rico
Não descola nem um circo
Pra dar banho em leão

Quem via o céu
Hoje só vê urubu
Pensa que é o uirapuru
Oferecendo uma canção

j. a. pelegrina, 19/05/2000

Ausência Expressionista (Arco Ascendente)

Como um louco
Um desvairado consciente
Um policial noir da zona leste
Num dia de sol poente
Tarde luminosa
De crepúsculo esfaimado
Juntei numa tralha
Meus estorvos tecnológicos
Joguei no terreno baldio
Meti o pé em cima, ergui o braço
E gritei para que me ouvissem:

- Tecnologia de bosta
- Do marketing agressivo
- Das crueldades de mercado
- Das transnacionais escravocratas
- Das hipocrisias constituídas

Gritei aos meus vizinhos
De quarenta anos vividos
Pobres como eu
Periféricos como eu
Cultos e incultos como eu
Pedi ao meu Deus
Que não me considerasse blasfemo
Pedi aos meus amigos
Que me abandonassem um pouco
Pedi aos meus filhos
Que me compreendessem mais
Pedi a minha mulher que se calasse um minuto
E depositei em meus ombros
Responsabilidades vicinais

Não quero saber da áfrica
Não quero saber da Ásia
Não me interessam tsunamis
E pobres afogados na fome
Pouco me importa a globalização
Estou cansado, muito cansado
E tenho vontade de chorar
Mas sou fodido macho de bordoadas
De não sentir dor qualquer

Interessa-me apenas o que sou
Estou farto, mas não gasto
Não sinto gastura qualquer que me encrua
Sinto-me livre como nunca

O que sinto é uma ausência
De terras e árvores e águas com peixes
E pássaros que cantam
E cigarras vespertinas e vagalumes
E grilos incautos e grelos noturnos perfumantes
E ruas sem asfalto e sem calçadas
E músicas e tintas do tempo
Que se consideravam arte
Alimentos de almas refinadas

Sinto um vazio de algo
Que não sei explicar
Não sinto medo, sinto ausência
Sentir ausência é pior
Do que sentir qualquer outra coisa.

Devo continuar estes versos?
Não terminaria nunca...
Pois o que sinto não tem começo
Tampouco fim.

Há um sentir apenas
Coisa errante - e pronto.


j. a. pelegrina, 10/11/2009

São Mateus (Arco Ascendente)

Quem disse que São Mateus é biboca?
E disse que além de biboca
É broca viver com os manos?
Quem disse, não suportará porrada!
Não é porrada tanta, mas esporro na alma.

Porque os caras chegam junto?
E assaltam no semáforo?
E compram a pedra louca
Que não é pedra angular do sistema vigente?

São Mateus é pedra de função
E pedra de função
É o risco de viver feliz
Mesmo o trampo raro matando de fome
E a pilantropia temperada de água benta.

São Mateus não é Higienópolis.
Como quem pensa que a guerra
É Higiene do mundo
De fazer passar bem higienopolitanos
Que também cheiram, viu moço, e defecam
Na mesma louça onde cagam os pobres.

A guerra dos roses?
A guerra dos browsers?
A guerra quente e fria?
A guerra etnosafada
Que esmerilha a raça!

São Mateus morre de alegria
De saber-se sã
Entre bichas, anarquistas, democratas,
Conservadores, cibernautas e gente simples
Que sabe ganhar dinheiro honestamente:
Professores, comerciantes, jornalista, catadores
De papelão, de lata, de ilusão e doutros, Viu?

- Cala a boca, borrabotas!

j. a. pelegrina, 08/11/2008